Metabolismo de carboidratos
A partir do consumo de alimentos ricos em carboidratos como arroz, pães, massas, tubérculos, frutas e outros, temos polissacarídeos, dissacarídeos e monossacarídeos que, após o processo de digestão e absorção, podem convergir para a via glicolítica (via de oxidação parcial da glicose). Essa via produz : i- moléculas intermediárias que podem ser utilizadas na síntese de outras substâncias; ii- energia química na forma de ATP; iii- transportadores de elétrons reduzidos (NADH+H+); iv- piruvato.
Todas as células necessitam de energia para a manutenção de seu metabolismo. Dentro desse contexto, a glicose ocupa uma posição central, pois a via glicolítica acontece em todas as células; em eritrócitos, neurônios e células do olho a glicose é a única e/ou principal fonte de energia.
Como ocorre
A oxidação da glicose pela glicólise, também chamada de Via Embden-Meyerhof, é classificada como um processo catabólico/exergônico (relembre no post ‘’Introdução ao Metabolismo’’ o que são reações catabólicas/exergônicas e anabólicas/endergônicas) .
A glicólise ocorre no citoplasma das células, a partir da entrada da glicose - do meio extra para intracelular, através de transportadores GLUTs ou SGLT (saiba mais no post ‘’Transporte da glicose para o meio intracelular’’). Suas etapas são subdivididas em duas fases: a fase preparatória (de consumo de ATP) e a de pagamento (de produção de ATP).
Visto isso, as etapas da glicólise são as seguintes:
Fase Preparatória
1ª Etapa - Enzima: hexocinase, cofator Mg+ - glicose + ATP -> glicose-6-fosfato + ADP
Uma vez fosforilada, a glicose-6-fosfato não é capaz de se difundir pela membrana plasmática, pois possui polaridade (negativa) em pH fisiológico e; não existe transportador capaz de permitir sua saída da célula.
2ª Etapa - Enzima: fosfohexose-isomerase, cofator Mg+ - glicose-6-fosfato -> frutose-6-fosfato
3ª Etapa - Enzima: fosfofrutocinase-1 (PFK-1)- frutose-6-fosfato + ATP -> frutose-1,6-bifosfato + ADP
*A fosfofrutocinase-2 (PFK-2), uma enzima bifuncional diferente da PFK-1, fosforila a frutose-6-fosfato em frutose-2,6-bifosfato, o qual desempenha um papel de regulador alostérico (ativador) da PFK-1, principalmente hepática.
4ª Etapa - Enzima: frutose-1,6-bifosfato-aldolase - frutose-1,6-bifosfato -> gliceraldeído-3-fosfato + diidroxiacetona-fosfato
5ª Etapa - Enzima: triose-fosfato-isomerase - diidroxiacetona-fosfato -> gliceraldeído-3-fosfato
Fase de Pagamento
6ª Etapa - Enzima: gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase - gliceraldeído-3-fosfato + Pi + NAD+ -> 1,3-bifosfoglicerato + NADH+H
7ª Etapa - Enzima: fosfoglicerato-cinase, cofator Mg+ - 1,3-bifosfoglicerato + ADP -> 3-fosfoglicerato + ATP
8ª Etapa - Enzima: fosfoglicerato-mutase, cofator Mg+ - 3-fosfoglicerato -> 2-fosfoglicerato
9ª Etapa - Enzima; enolase - 2-fosfoglicerato -> fosfoenolpiruvato + H2O
10ª Etapa - Enzima: piruvato-cinase, cofator Mg2+ e K+ ou Mn2+ - fosfoenolpiruvato + ADP -> piruvato + ATP
Assim, o saldo líquido da via glicolítica, a partir de uma molécula de glicose, é: duas moléculas de piruvato, duas de NADH+H e duas de ATP, visto que:
glicose + 2ATP + 2NAD+ + 4ADP + 2Pi -> 2piruvato + 2ADP + 2NADH + 2H+ +4ATP + 2H20
Regulação
A regulação da via glicolítica pode ocorrer por: balanço de massa, relacionado à disponibilidadedo substrato e o quanto ele é consumido; controle da expressão de enzimas, via transcrição gênica; modificações covalentes (fosforilação, por exemplo), podendo ser mediadas por hormônios; e alosteria em enzimas com sítios regulatórios.
Portanto, as etapas e enzimas reguláveis da via glicolítica são:
Etapa 1 - Hexocinase: retro regulação negativa pela glicose-6-fosfato.
Etapa 2 - Fosfofrutocinase-1 (PFK-1): é o principal ponto de regulação, visto que é a única enzima que atua sobre metabólitos específicos da via glicolítica. Ela sofre regulação alostérica positiva em baixo teor energético (alta concentração de AMP ou ADP em relação a ATP); e regulação alostérica negativa em alto teor energético (alta concentração de ATP). Além disso, a PFK-1 também pode ser regulada de outras maneiras no músculo e no fígado; no músculo ela é inibida pela alta concentração de prótons (H+), visto que sinaliza a presença de lactato; e no fígado é inibida pela alta concentração de citrato, que indica a presença de blocos de construção de moléculas, e é favorecida pela presença de frutose-2,6-bifosfato (formada pela PFK-2), por retroalimentação positiva. Já a regulação da fosfofrutoquinase-2, enzima bifuncional, é hormonal, pois a insulina ativa a fosfoproteína fosfatase, a qual desfosforila a PFK-2 e, consequentemente, ativa-a; em contrapartida, o glucagon estimula a adenilciclase a sintetizar AMP cíclico, o qual ativa a proteína-cinase dependente de AMPc (PKA) que fosforila e inativa a PFK-2.
Etapa 10 - Piruvato cinase: sofre regulação alostérica positiva pela presença de frutose-1,6-bifosfato; é inibida pela alta concentração de ATP, acetil-CoA e ácidos graxos de cadeia longa; sofre retroalimentação negativa pela alanina, visto que ela pode ser formada a partir do piruvato pela transaminação. Além disso, a isoenzima hepática da piruvato cinase também sofre regulação hormonal, pois o glucagon desencadeia reações de fosforilação intracelular,), que culminará na inativação da piruvato-cinase (forma fosforilada).
Na clínica
Deficiência da piruvato cinase
A deficiência da enzima piruvato cinase ocorre em função de uma mutação autossômica recessiva, que tem como consequência a produção ineficiente de ATP e aumento celular de 2,3-bifosfoglicerato. Como eritrócitos possuem a glicólise como única via metabólica fornecedora de energia, o comprometimento da piruvato cinase é capaz de afetar 50% do ATP gerado nessa célula e, consequentemente, causar a lise celular e anemia hemolítica, do tipo não esferocítica congénita. Entretanto, com o acúmulo de intermediários formados anteriormente à etapa da piruvato cinase na glicólise, como o 1,3-bifosfoglicerato, ocorrea conversão deste em 2,3-bifosfoglicerato, pela enzima 2,3-fosfoglicerato-mutase, no ciclo de Luebering–Rapoport nas hemácias, o qual possui papel de regulador alostérico, capaz de diminuir a afinidade de moléculas de hemoglobina pelo oxigênio molecular, facilitando, assim, a oxigenação tecidual. Devido a isso, se explica o porquê de alguns pacientes apresentarem maior tolerância à anemia.
Células cancerígenas
Células cancerígenas são capazes de "crescer'' mais rapidamente do que vasos sanguíneos, o que faz com que elas, frequentemente, se encontrem em situação de hipóxia. Em função disso, elas apresentam uma série de adaptações - mediadas por oncogenes, como, por exemplo, o HIF-1α, o Myc, o PI3K / Akt / mTOR, RAS, PTEN e p53 - que as possibilitam uma maior síntese de ATP em condições anaeróbicas... Isso é possível porque há aumento da captação de glicose do meio extra para o intracelular, bem como aumento da expressão de enzimas importantes da via glicolítica, resultando, assim, em uma maior eficiência da via, com consequente produção rápida de ATP.. Visto isso, existem algumas intervenções terapêuticas para otratamento do câncer que visam, justamente, afetar a glicólise (onde alvo são enzimas, como: hexoquinase, gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase, enolase e piruvato cinase) ou os transportadores de glicose expressos por essas células (exemplo o GLUT1).
Referência Bibliográfica
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